terça-feira, 8 de junho de 2010

Sem efeitos especiais

Pudesse ser tudo como por vezes o cinema nos mostra... Chegar do ar, descer sobre Nova Iorque, rumo a Manhattan, a caminho do Central Park, reduzir velocidade e parar frente à Fonte de Bethesda, só acontece numa fracção de segundos no genérico do telefilme Angels In America, que Mike Nichols realizou com base numa peça de teatro de Tony Kushner. Na realidade, o mesmo trajecto, para o mais comum dos seres humanos, é coisa que pode levar umas horas…

Nada demais a relatar no voo de Lisboa para Newark, onde desde há alguns anos chegam e partem muitas das ligações entre a capital portuguesa e Nova Iorque. Na verdade, e para quem tem Manhattan por destino, o aeroporto de Newark não fica muito mais distante da nossa meta que o JKF, em Long Island. Há uma ligação de metro possível do JFK a Manhattam. Mas a linha não é bem a Picadilly Line que liga Heathrow ao centro de Londres… E de malas nas mãos, e com uma viagem de avião um tanto mais longa, a chegada merece um pouco mais de conforto.

Passar a fronteira dos EUA dá um trabalhão. Longas filas, fichas devidamente preenchidas (de preferência antes de aterrar). E uns funcionários com cara de poucos amigos a olhar para quem acaba de chegar. Ao que vem? Quanto tempo fica? Watch the birdie…. E zás, tiram-nos uma fotografia. Isto e mais esperar pelas malas e é quase uma hora que passa.

São várias as opções que se colocam a quem chega a Newark… Dois anos depois, de regresso a Nova Iorque, optei por um transfer de quatro rodas, com motorista ao volante, mal imaginando que me esperava longo, bem longo compasso de espera para atravessar o Lincoln Tunnel (era dia de semana e já tinha a obrigação de saber como é o trânsito nos acessos a Manhattan!). Naquela tarde de Verão, e porque íamos ficar num apartamento bem perto do Madison Square Garden, olhámos para a placa que indicava a estação de comboio junto ao aeroporto, malas nas mãos e seguimos em frente.

Foram poucos os que pensaram o mesmo que nós e a plataforma estava quase vazia. Fazia já calor. E apenas uma estrutura coberta tapava o sol. Porém, sem ar condicionado! Ao relento, ao menos a coisa era menos abafada!

O comboio era um daqueles que fazem ligações suburbanas, certamente ligando Manhattan a Newark, a poucos quilómetros de distância, o aeroporto algures a meio caminho. Vinha mais cheio que vazio. E, anos antes da moda dos headphones XXL chegarem a estes lados do oceano, já o aparato morava na cabeça de muitos dos que partilhavam aquele troço final para apenas mais duas estações. Convenhamos que tão XXL como os auscultadores era q uem os usava, boné, ténis e calções largos a rigor. Os filmes, está visto, não mentem.

Seguimos junto ao rio, subindo-o com o skyline de Manhattan a traçar a paisagem à nossa direita. O olhar inevitavelmente apontava ao extremo Sul da ilha, em busca do que já lá não estava: as Torres Gémeas. Tinha subido ao observatório no 107º de uma delas na última passagem pela cidade, alguns anos antes. Estávamos já no século XXI, portanto. Um túnel chamou então as carruagens, que se imobilizaram pouco depois de o atravessar, parando numa das plataformas da Penn Station.

Grande invenção, a das malas com rodinhas. Puxámos pelas trelas e arrastámo-las pela rua 33, passando primeiro a sétima aveninda, virando à esquerda na sexta. E depois da Harold Square, entrando na rua 34, a mesma onde, ao lado, mora o Empire State Building, que recentemente havia reclamado novamente o estatuto de edifício mais alto da cidade.

À entrada, ao entregar das chaves, tomam-me por italiano. Não era a primeira vez que acontecia, na América… Apartamento no 23º andar! Cool! É suficientemente alto para saber a arranha-céus (na verdade o edifício só tinha mais dois andares, mas ninguém precisa de olhar para cima, que a cidade corre mais em baixo). Cozinha, casa de banho, sala com zona de dormir e zona de estar, TV e aparelhagem áudio. Ok, serve perfeitamente. Arrumar malas, que é como quem diz deixá-las num canto.

Antes de continuar o trajecto, há que “mobilar” minimamente a nova casa. Na Broadway, perto da esquina com a rua 33, havia uma daquelas parafarmácias que vendem tudo, de soro fisiológico a fruta e sumos… Já safa um primeiro serão. E com o frigorífico menos vazio que o que se mostrara minutos antes, rumo ao metro, que já passaram mais de duas horas desde que chegámos…

A linha D tem estação na rua 34 com a Herald Square. Nos meus dias de Filadélfia usava ‘tokens’, que se compravam com ‘quarters’ (moedas de 25 cêntimos), mais que um ‘quarter’ por viagem, claro. Agora há cartões com crédito que se pagam com cartão de crédito. Já os torniquetes de metal por onde se passa são os mesmos de sempre, desagradáveis e pesadões, mas lá se passam e estamos na plataforma. Entramos. As estações vão-se sucedendo… E só então reparo que nos metemos num “express train”, que sobe todo o Central Park de um só fôlego e, depois da rua 59, só pára em pleno Harlem, na rua 125. Toca de voltar para trás. Linha B abaixo, até à rua 72… E já na rua, uma imagem com peso mítico: o Dakota, edifício onde viveu (e à porta do qual foi assassinado) John Lennon. Já lá vamos, que a viagem sugerida em Anjos na América chama primeiro…

Primeiro uma água fresca. Compra-se a garrafa num dos quiosques na entrada do parque, que todos os dias devem matar a sede a muitos fãs dos Beatles que ali passam em peregrinação, com máquina fotográfica na mão. Entramos pela West Drive, que liga o parque à rua principal que lhe serve de fronteira. Viramos na 72th Transverse… E não muitos passos depois, nem reparando que o “memorial” a Lennon, feito com calçada portuguesa, estava mesmo ali ao nosso lado, chegamos finalmente à estrutura construida na década de 60 do século XIX. Duas escadarias laterais, uma galeria subterrânea e mais uma escadaria ao fundo. E, lá em baixo, a mesma estátua que nos anos 60 era ponto de encontro de beatniks e, nos 70, de dealers. A mesma que fecha o plano final do genérico do telefilme… Na televisão são poucos segundos… Ao vivo, sem efeitos especiais, foi viagem para quase três horas…

Banda sonora:

Angels In America, de Thomas Newman
A banda sonora do genérico de que se fala. A música é interpretada por uma orquestra dirigida pelo próprio Thomas Newman.






Go Away White, dos Bauhaus
É o menos interessante dos álbuns dos Bauhaus, nascendo da sua mais recente reunião. A ligação faz-se na capa, onde surge uma foto da estátua que vemos na fonte de Bethesda.




Central Park in the Dark, de Charles Ives
São várias as gravações desta obra de 1906 de Charles Ives. Uma das melhores gravações da obra é esta, que a DG editou e que resulta de uma gravação de 1987 dirigida por Leonard Bernstein, à frente da New York Philarmonic.