terça-feira, 15 de junho de 2010

Bowery, 315

Já por lá tinha passado em visitas anteriores a Nova Iorque, mas daquela vez tinha de regressar ao número 315 da Bowery. Até porque, daí a alguns meses, seria cumprida a ordem oficial e o mais mítico dos clubes de rock da cidade fecharia definitivamente as portas. Chamou-se CBGB, ou seja, as iniciais de country, bluegrass and blues. E acrescentava ao nome as letras OMFUG, que por sua vez traduzia a ideia de “other music for uplifting gourmandizers”… Na verdade foi mais pelo espírito OMFUG que pela linha CBGB que o clube ganhou o seu lugar na história da música popular, acabando associado à génese do punk nova-iorquino.

Num incaracterístico edifício, relativamente baixo, com paredes de tijolo, o toldo branco com as iniciais CBGB – OMFUG, a vermelho, não enganava nunca quem passasse então pela movimentada Bowery, uma das artérias centrais do trânsito no East Village, em Manhattan. Sob o toldo uma zona da parede pintada a branco abria espaço para uma porta escura, com uma pequena janela de cada lado, os vidros tradicionalmente pintalgados a flyers anunciando concertos e mais concertos.

Estávamos ainda a meio da tarde, portanto a horas da abertura das portas. Mas a porta na verdade estava aberta, uma cortina escura separando a rua do clube. Normalmente, depois das portas, os bares têm um pequeno hall, antes da zona de balcão e palco. E só lá para o fundo, fora da movimentação, o escritório. Pois no CBGB, depois da porta, e antes mesmo de entrarmos no bar, os primeiros metros quadrados do clube não eram senão o escritório. Flyers e cartazes na parede, muita papelada sobre as mesas. Um pequeno aparelho de TV a meia altura… Numa das mesas um computador. Estava por lá um pequeno grupo de homens a falar. Conhecia, naturalmente de fotos, a figura de Hilly Kristal, o dono e fundador do clube e, por inerência dos factos, uma espécie de “padrinho” (num sentido que não o dos Corleone) do punk. Não era nenhum entre os que ali via... Perguntei então se estava. Sou jornalista e gostaria de fazer um trabalho sobre o CBGB… Blá blá blá… Certamente mais um entre milhares. Sobretudo desde que, nos últimos anos, e na sequência de uma questão ligada com a renda, a luta pela sobrevivência do clube o devolvera às páginas dos jornais onde há muito, convenhamos, dele não se falava… Disseram-me que ligasse de manhã, que bem cedo Hilly Kristal lá estaria… Muito obrigado, e até amanhã.

Antes de seguir caminho, com a Other Music (a mais fantástica loja de discos com alma indie em Manhattan) ali à espera, na não muito distante rua 4, uma passagem pela porta ao lado. O número 313 da Bowery acolhia então a CB’s Gallery. Ou seja, uma extensão directa do clube, com bar já a funcionar à luz do dia, com área para exposições (lá havia uma, de pintura) e ainda espaço para uma mini loja CBGB. Ao lado de cartazes ‘Save CBGB’ ali havia de tudo na “linha” CBGB, das míticas T-shirts negras com o logotipo do clube às variações nos mais variados tamanhos e cores, algumas delas nada punk... Havia uma outra T-shirt, imitando a mancha dos flyers promocionais, com nomes de bandas que por ali tinham tocado. Ainda cortinas de duche (sim, cortinas para duche) CBGB. Boxers e lenços. Palhetas, porta chaves… Autocolantes, discos em vinil. E o livro CBGB – OMFUG: Thirty Years Of Underground Rock, uma fotobiografia com introdução de Hilly Kristal e prefácio de David Byrne. Fiz umas compras. Marcharam duas T-shirts, uns autocolantes e dois discos em vinil com gravações vintage… Tudo devidamente acondicionado num daqueles sacos de papel brilhante, com asas a imitar corda, tipo loja chique de avenida principal. Saco preto, com letras prateadas… Não exactamente… punk.

Na manhã do dia seguinte chovia a cântaros. Telefonei às nove e pouco, depois de um pequeno almoço com uma incontornável ‘stack’ de panquecas e um “baldinho” de café de saco. Foi o próprio Hilly Kristal quem atendeu. Tudo OK… Podia estar no clube daí a meia hora? Claro. A caminho do metro, Manhattan abaixo. E lá estava a tempo e horas.

Sentámo-nos no escritório. Ele, de T-shirt oficial do clube e um hoodie cinzento escuro por cima, fazendo ainda as contas da noite anterior, a sua cadeira sendo a que olhava de frente para a porta de entrada. Recordou então memórias. De como tinha aberto o clube em 1973 a pensar numa ementa de som com country, bluegrass e blues. “Não a country de Nashville, mas os idiomas folk, o bluegrass”, explicou. A Bowery era, então, “a pior parte da cidade” e “muita gente nunca viria a este lado”. Havia “medo da zona”, recordou. Tudo mudou quando começou a programar outras músicas. Jazz, rock’n’roll… “Depois toda aquela nova onda de músicos… Chamaram-lhe punk mais tarde, mas no princípio tratámo-los como street rock”, descreveu. Eram, como acrescentou ainda, “miúdos sem nenhum lugar para tocar a sua música, que ensaiavam em águas furtadas, onde também dormiam”. Pois entre os “miúdos” estavam os Talking Heads, os Ramones, Patti Smith, os Television, Richard Hell, Blondie… Toda uma nova geração de bandas que mudaria profundamente a história da música popular.

Falámos e falámos, sem olhar para o relógio. Ou seja, nada daquelas entrevistas tipo enlatado para 20 minutos de perguntas e respostas que se tornaram norma no mundo do jornalismo musical. Perguntei então se podia tirar umas fotos às míticas paredes do clube. Força!

Pela passagem ao lado esquerdo do vestíbulo/escritório entramos na sala principal. O bar no lado direito da sala estreita e comprida. À equerda, e sob uma plataforma elevada, as mesas e cadeiras, àquela hora da manhã ainda arrumadas umas sobre as outras. Ao fundo o palco feito de tábuas, elevando-se a apenas poucos centímetros do chão, adivinhando evidente proximidade entre quem toca e quem assiste. Bateria, microfones, cabos e mais cabos… Colunas de som a meia altura nas paredes, outras levantadas do chão. Ao lado as casas de banho… E pelas paredes um sem fim de graffiti, restos de cartazes e flyers, palavras escritas a caneta, marcas de noites de música ao vivo que, mesmo numa manhã de casa vazia, transbordavam de sugestões de memórias com som.

Em jeito de balanço, Hilly afirmou então que gostou do que ali acontecera nos anos 70. “Havia uma necessidade entre os mais jovens para se afirmarem como indivíduos, uma vontade de dizer algo, coisas positivas, coisas negativas. Não era um discurso como o que se fizera contra a guerra no Vietname, era mais individualista. E isso é saudável”, rematou. Despediu-se à porta, com mais uma foto da praxe…

O CBGB fechou definitivamente as portas em Outubro de 2006, Patti Smith tendo sido a última a pisar o seu palco. Hilly Kristal morreu, vítima de complicações de um cancro, em Agosto de 2007. Hoje, o número 315 da Bowery acolhe uma das lojas do designer John Varvatos.

Banda sonora:
Horses, de Patti Smith
Patti Smith foi a primeira voz, entre as reveladas no CBGB, a conhecer um contrato com uma grande editora. Horses, em 1975, foi o seu primeiro disco. As canções passaram pelo palco do CBGB.

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Marquee Moon, dos Television
O grupo liderado por Tom Verlaine foi outra das forças maiores nascidas da agitação punk que teve por palco primeiro o CBGB. De 1977, este disco é um clássico fundador desta linguagem.

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Talking Heads: 77, dos Talking Heads
O grupo foi também presença marcante no palco do CBGB nos dias de meados de 70, trilhando um caminho que os levou no sentido de ajudar a definir a etapa seguinte: a new wave. De 1977, este foi o seu primeiro álbum.





PS. A entrevista com Hilly Kristal foi publicada no nº 33 da revista 6ª, que acompanhou a edição de 25 de Agosto de 2006 do DN.