segunda-feira, 21 de junho de 2010

O que resta de um muro

Mais de 20 anos depois da noite em que o muro deixou de ser uma barreira entre os dois lados de Berlim, o que dele resta é agora pouco mais que paragem turística (que a memória contudo não ignora como cicatriz de um período menos luminoso na história da cidade). Hoje, passando por Potsdamer Platz, ao olharmos para as placas de betão pintadas que ali “moram”, talvez tenhamos dificuldade em imaginar o que foi uma das mais desoladas terras de ninguém assim criadas em pleno centro de Berlim… E era assim, há apenas pouco mais de 20 anos…

Foram quase três décadas aquelas que Berlim viveu separada de parte de si mesma. Já havia uma zona de fronteira, delimitando o sector da cidade que, depois do fim da guerra, ficara sob controlo soviético. Havia barreiras e zonas de passagem. O “muro” surgiu, feito de tijolo, arame farpado e vergonha em Agosto de 1961. A decisão surpreendeu os berlinenses na manhã de 13 de Agosto, que subitamente viam fechado o acesso a Berlim Leste. Havia soldados a manter guarda em frente às Portas de Brandenburgo. Desde as primeiras horas da noite surgiram barreiras com arame farpado e, poucos dias depois, um primeiro muro com tijolos na linha de fronteira, quer circundando o perímetro externo dos sectores americano, inglês e francês, quer na linha de divisão com a metade Leste da cidade.

Fotos que acabariam célebres olhavam então os momentos em que famílias eram divididas e amigos ficavam separados… Seguiram-se histórias de tentativas de fuga, umas bem sucedidas outras nem por isso. Umas usando prédios na linha de fronteira, entrando pela porta a Leste e saindo, bagagens na mão, por janelas a Ocidente…

Com o tempo, e para evitar mais fugas, a linha de fronteira a Leste foi atentamente delimitada, pela agenda de trabalho passando planos de demolições e emparedamentos de janelas. Surgem mais tarde as torres de vigia. E, em 1966, uma segunda geração do muro, com paredes lisas, de betão, com uma secção cilíndrica no topo e sem pontos de apoio para qualquer eventual escalada. O “muro da vergonha”, assim acabou conhecido. Quando Kennedy o visitou, panos taparam o espaço entre as colunas das portas de Brandenburgo, impedindo que “espreitasse” o bloco de Leste… No mesmo local, em 1987, Ronald Reagan juntou palavras suas à história da cidade, pedindo ao líder soviético: “Mr Gorbachev, tear down this wall!”.

À sua sombra, David Bowie gravou em finais dos anos 70 três álbuns que, captando a alma da cidade, mudaram a sua música (e a de quem nela depois se inspirou). Mais de dez anos depois, em tempo de mudança, os U2 renasceram nos mesmos estúdios à beira-muro (os chamados Hansa By The Wall), ali surgindo Achtung Baby, disco que celebra precisamente um momento de mudança e choque de culturas quando as duas meias cidades se reencontraram.

Os estúdios ainda existem, mas ninguém imagina que o que hoje é uma rua movimentada e habitada por vários edifícios e empresas, era então um desencantado canto da cidade. A queda do muro deixou vasto espaço livre em seu redor, pelo que hoje o edifício é um entre os muitos que vemos, de cara lavada, na Kothener Strasse, junto à alameda do parque Felix Mendessohn Bartholdy, e a dois minutos a pé da renascida Potsdamer Platz. Passando na rua mal imaginamos que ali mora tanta história. Há um restaurante no rés-do-chão, uma sala de eventos no primeiro andar (muito usada para festas durante a Berlinale) e alguns pequenos escritórios no mesmo edifício.

O momento da mudança, de que Achtung Baby acabou por ser uma consequência, inscreveu na história o dia 9 de Novembro de 1989. Fisicamente, o muro não caiu imediatamente. Nos dias posteriores a 9 de Novembro foi anunciada a abertura de novos postos de fronteira em Berlim. Os guardas ainda vigiaram o muro durante alguns dias. Mas com o tempo aligeiraram a segurança. E em poucos meses pedaços do muro começaram a ser derrubados… E a 3 de Outubro do ano seguinte a reunificação alemã arrumava definitivamente esta história.

Pouco resta hoje do muro. Muito dele foi imediatamente desmantelado, feito em pedaços. Ainda hoje se vendem pedaços de muro (resta saber se do original, se de “fabrico” mais recente)… Há mesmo assim três segmentos expressivos ainda em pé. Um deles em Bernauer Strasse, outro junto à ponte Oberbaumbrücke (hoje conhecido como a East Side Gallery, revelando várias intervenções artísticas) e ainda um terceiro na zona entre Potsdamer Platz e o Checkpoint Charlie (célebre zona de fronteira que as lojinhas para turistas continuam a mitificar).

É extenso o pedaço de muro que vemos na Niederkirchnerstrasse, junto ao Martin Gropius Bau (grande edifício desenhado para albergar um museu e hoje destino de várias exposições temporárias que, todos os anos, em Fevereiro acolhe o Mercado Europeu do Cinema, organizado em tempo da Berlinale). Na verdade, este pedaço de muro é-nos servido num bizarro dois-em-um, já que serve de parede, ao nível do solo, a uma outra, outrora subterrânea, que pertencera às caves da antiga sede da Gestapo e que nos últimos anos tem sido o endereço da exposição ao relento “Topographies des Terror”. Apontando o olhar, como o fazem tantas máquinas fotográficas que ali passam todos os dias, vemos num mesmo plano marcas de duas etapas sombrias na história de Berlim.

Ao contrário da velha parede da Gestapo, onde textos e imagens recordam que cave afinal fora aquela, o muro parece hoje um inofensivo pedaço de betão. Nem muito espesso. Nem por isso assim tão alto… Mas absolutamente intransponível em tempos idos. Experimento colocar-me de frente para uma secção do muro. Ou seja, olhando-o de lado… Parece uma parede. Uma parede quebrada. Mas que em tempos separava duas visões do mundo.

Caminhando daí até Potsdamer Platz (e a viagem dura pouco mais de um minuto a pé, a bom passo), vemos hoje, primeiro uma esquina de trânsito composto, edifícios modernos e, mais adiante, uma das mais espantosas concentrações de arquitectura contemporânea no coração de uma cidade europeia. E aí, ao lado de grandes hotéis e de monumentais entradas para a estação de comboios (e também de metro), alguns pedaços do velho muro arrumados como se de uma instalação se tratasse. A vibrante agitação que aquele ponto de Berlim hoje conhece - é a sede da Berlinale, a Cinemateca e a Philarmonie estão por perto, há restaurantes, um centro comercial e muitos edifícios de escritórios – sublinha a forma como, tal como no mundo natural a vida brota sobre os mais improváveis terrenos depois de catástrofes, também ali a vida reclamou para si aquele canto que, durante longas décadas, era sombria e deserta terra de ninguém.

Banda sonora:
Heores, de David Bowie
Gravado nos estúdios Hansa By The Wall em meados de 1977, é um disco que reflecte sobre marcas e ambientes de uma cidade onde então Bowie encontrou nova casa depois de uma etapa em Los Angeles.




Achtung Baby, dos U2
Nos mesmos estúdios, mais de dez anos depois, e já sem um muro a dividir os dois lados de Berlim, um álbum que traduz as atmosferas de uma cidade reencontrada consigo mesma.




Ode an die Freiheit, por Leonard Bernstein
Juntando numa orquestra músicos dos dois lados da cidade e das forças que se haviam ali confrontado nos anos 40, Bernstein apresenta em Berlim, em finais de 1989, uma 9ª de Beethoven. Trocando uma palavra no poema de Schiller cantado no quarto andamento: “freiheit” (liberdade) em vez de “freude” (alegria).