quinta-feira, 1 de julho de 2010

À volta de Potsdamer Platz


Um pouco por consequência do que foi uma história algo atribulada, Berlim tem vários “centros”. Um deles, com a carga história definida em torno das Portas de Brandenburgo, com a vastidão verde (ou branca, no Inverno) do Tiergarten logo a oeste, o Reichtag bem perto e a Casa das Culturas do Mundo não muito distante (cinco minutos a pé), a leste estendendo-se a monumentalidade de Unter den Linden (avenida que lembra os dias da velha capital imperial). É na verdade este o coração da cidade, quebrado a meio quando o muro o dividiu, com arame farpado e, depois, tijolos e betão, precisamente junto às Portas de Brandenburgo. Um segundo centro, correspondendo à grande praça da antiga Berlim Leste, projectou-se em torno de Alexandrplatz, onde desemboca a Karl Marx Alee, a avenida que em tempos acolhia os desfiles do regime comunista. Um terceiro centro mora hoje em Potsdamer Platz, onde nos últimos 20 anos se desenvolveu um dos mais impressionantes núcleos de arquitectura contemporânea de toda a Europa.

Fica a aproximadamente um quilómetro a sul das Portas de Brandenburgo e representa, acima de tudo, um símbolo da vitória sobre a guerra fria e o encontrar de um novo caminho para a cidade depois da queda do muro.



É hoje a sede da Berlinale, de dois grandes multiplexes de cinema (o Cinemax e o Cinestar, dois importantes pólos de actividade durante o festival de cinema), um centro comercial, restaurantes, cafés…. Alberga uma série de importantes escritórios de grandes companhias, hotéis, e estações de U Bahn, S Bahn e mesmo da rede ferroviária nacional. A existência deste magnífico núcleo arquitectónico deve-se em tudo ao muro de Berlim. E, naturalmente, à sua queda.

Antes da II Guerra Mundial (que devastou completamente esta zona da cidade), Potsdamer Platz era uma praça elegante, cruzada por eléctricos, automóveis e transeuntes. Tinha cafés, hotéis, cinemas… Grandes lojas. E uma das principais estações de comboio de Berlim. A construção do muro reduziu a um vazio toda a área em torno da velha praça dos dias antes da guerra, afastando-a do novo mapa da cidade e quase apagando assim a sua memória. Do lado oriental os escombros de 1945 foram totalmente derrubados para assegurar maior e mais vasto campo de visão às patrulhas de vigilância. Do lado ocidental a zona acolhia um dos locais de visita “ao muro”, com uma escadaria montada para observação… turística. Entre os visitantes que por ali passaram para ver o outro lado de Berlim contam-se John F. Kennedy (1962), a rainha Isabel II (1965) ou Jimmy Carter (1978). De resto, entre as iniciativas que em 2009 assinalaram os 20 anos da queda do muro, foi ali erigida nova escadaria, com informação ao seu redor. Nos cartazes falava-se do muro que dividia a cidade, de factos ligados à história daquele lugar. Mas, subindo os degraus, lá de cima nada mais se via senão o intenso trânsito nas ruas ao seu redor e uma paisagem urbana moderna e habitada. O vazio e o silêncio de outros dias, são memórias ultrapassadas.


Foi em Potsdamer Platz que se abriu o primeiro rombo no muro, em Novembro de 1989. Depois de derrubado, em 1990, o muro e as zonas de segurança dos dias da guerra fria ali deixaram 60 hectares. Os mesmos onde hoje moram todos os edifícios que fazem desta uma das mais espantosas vistas da Berlim dos nossos dias.

Foi ainda no espaço deixado então livre entre Potsdamer Platz e as Portas de Brandenburgo, que Roger Waters encenou o mega-concerto The Wall, em 1990, uma mega-produção financeiramente suportada pelo próprio Roger Waters. Por detrás do palco era montado um novo muro branco, que seria derrubado no final da actuação. Foram vendidos 250 mil bilhetes. Porém, as “portas” do recinto foram abertas pouco antes do concerto, permitindo a entrada de ainda mais cem mil espectadores. Em directo, 52 países acompanharam o espectáculo pela televisão. Um concerto de duas horas que levou ao palco uma pequena multidão de convidados, entre os quais Ute Lemper, Marianne Faithfull, Joni Mitchell, Van Morrisson, Cindy Lauper, Jerry Hall, Bryan Adams, os Scorpions, orquestras e coros (um deles juntando elementos das forças russas então ainda estacionadas na Alemanha de Leste).

O concerto dava então um novo valor simbólico às canções do álbum The Wall, dos Pink Floyd. Editado 20 anos antes, era essencialmente, e na origem, uma reflexão sobre o isolamento individual, numa história que falava ainda de guerra e de totalitarismo. Um disco com a gravação do concerto foi editado quatro meses depois. E o “muro” dos Floyd passou a ser também o muro de Berlim.



Na verdade, quando falamos de Potsdamer Platz, estamo-nos a referir às áreas que cresceram a seu lado e não à praça em si, arquitectonicamente a menos exuberante das novas construções ali em redor. Atravessando a rua, em direcção ao Berlinale Palast (a “casa” das principais projecções e cerimónias durante o festival), vemos do lado esquerdo o Mendelssohn Bartholdy Park, hoje ladeado por espantosos edifícios que tanto dão tecto a escritórios como a habitação.

A “alameda” central deste pólo abre portas, entre outros, ao Arkaden, o centro comercial em cuja galeria central muitos cinéfilos passam noites, de saco cama, para tentar comprar bilhetes para as sessões mais disputadas. Do outro lado da rua, o Cinemax Café é, durante a Berlinale, uma espécie de ponto de encontro onde tanto se juntam amigos como ocasionais encontros de negócios. Ainda este ano, ao meu lado, um produtor tentava vender os mais inenarráveis filmes a um distribuidor sabe-se-lá de onde… Nem um nem outro falavam grande inglês…

Ali há comidas para todos os gostos e preços… Nada de muito elaborado, gourmet ou mesmo de fazer corar uma carteira. Dos bifes à la americana do Maredo aos enchidos alemães (em restaurantes no piso inferior do Arkaden), das sanduiches e bolinhos com ar de delícia para a corte de Versalhes de uma pastelaria mesmo à porta do centro comercial à oferta mais standard de um McDobalds mais à frente, um Starbucks ainda pelo caminho, não se pode dizer que haja falta de oferta para encher a barriga…


Caminhando para a direita, atravessamos a rua mais movimentada. E eis-nos no Sony Center, um dos exemplos mais vivos da nova Berlim aquitectónica. Construído entre 1996 e 2000 é na verdade um conjunto de edifícios em volta de um pátio central, e alberga, entre outros, o multiplex Cinestar, as salas mais “de autor” do Arsenal, um ecrã IMAX, a cinemateca (Filmhaus), cafés e restaurantes, uma pequena Legoland, lojas, apartamentos de habitação e escritórios. O projecto arquitectónico foi assinado por Helmut Jahn e hoje é um retrato frequente nas memórias de turistas que visitam Berlim, inevitavelmente fotografando a cúpula que domina o grande pátio central deste conjunto. Acho que não passou ano em que estivesse na Berlinale que não tenha tirado uma foto à cúpula da praça…

Apesar de derrubado (o que permitiu o nascimento de todas estas estruturas) o muro tem memória preservada em Potsdamer Platz. Ao lado de uma das entradas para as estações de metro e de comboios, ali estão pedaços da estrutura de betão. Pintados. Para a foto do turista… Mas também para não esquecer.

Banda sonora:
The Wall, de Roger Waters
Recriação, ao vivo, e com convidados, do clássico álbum de 1979 dos Pink Floyd. O espectáculo foi encenado entre as Portas de Brandenburgo e Potsdamer Platz depois da queda do muro. E as canções ganharam novo sentido…


Berlin, de Theo Bleckmann e Fumio Yasuda
Canções berlinenses, que ecoam várias etapas da conturbada história da cidade no século XX. Canções de amor, de guerra e de exílio, em novos arranjos para cordas, piano e voz.
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Sinfonia nº 2, de Mahler
A segunda sinfonia de Mahler fala de ressurreição, precisamente o que aconteceu nos últimos 20 anos em Potsdamer Platz. Esta gravação é dirigida por Simon Rattle, que hoje dirige a Filarmónica de Berlim, que mora mesmo ao lado desta praça.